#33 - gafanhotos de moto e ódio ao capital
Finalmente comecei minha primeira HQ autoral e vim falar sobre o processo
Quase toda criança desenhista que conheci tinha como hobby (tudo é hobby quando você não pensa em trabalho) fazer quadrinhos artesanais e gastar absurdos de folhas sulfite no processo. Comigo não foi diferente. Eu desenhava bonequinhos durante a aula e depois de muitas broncas de professoras e recadinhos no caderno, minha mãe resolveu agir e comprar material para que eu começasse a desenhar fora da escola. Ali ela já sabia que estava comprando cadernos demais por ano, uma vez que o espaço das minhas matérias era amassado pelos desenhos e histórias malucas.
Dos 10 aos 13 anos, vivi aquele boom do retorno dos Cavaleiros do Zodíaco e das intermináveis sequências de Power Rangers, ou mesmo da maravilhosa X-Men Evolution, entre outros seriados que passavam na TV. Era difícil não produzir coisas que fossem um resumo ou uma releitura dessas franquias. Com o tempo, a gente não só envelhece, mas passa a gostar de coisas diferentes.
Depois dos 30, você já não quer mais ver desenhos, se muito seriados de live action que marcaram a sua infância. E seu universo de reflexão não é mais sobre criar personagens, e sim escapes da realidade, ou mesmo cunhar críticas a respeito de situações difíceis da vida real. Era uma tarde ensolarada no alto do meu desemprego, em São Paulo, quando eu tive uma ideia enquanto fazia esteira na academia: e se eu fizesse um Kamen Rider brasileiro, paulistano e motoboy? Foi aí que eu entrei em uma espiral criativa bizarra. Joguei a ideia pra um amigo de infância, Marcelo, que também é fã do gafanhotão. Ele curtiu. Era tudo que eu precisava pra continuar a loucura. Porque a maluquice só cresceu quando alguém incentiva.
Um pouco de contexto
Pra quem não sabe, contextualizo: Kamen Rider é uma franquia japonesa de mais de 50 anos, contando a história (até certo ponto) de motoqueiros malucos que combatem organizações do mal para salvar a humanidade. No Brasil, embora o gênero de Tokusatsu tenha se popularizado no início dos anos 1980, com Jaspions e afins, o Kamen Rider Black estourou em 1991, na tela da Manchete. Sua versão seguinte, essa que eu vi a partir de 1995, era Kamen Rider Black RX. Ele luta contra a organização Gorgom, que basicamente é um experimento eugenista da alta cúpula do governo japonês para criar monstros/escravos a partir de modificações genéticas. Humanos somem e dão lugar a aberrações que saem na mão com o Kamen Rider tentando rendê-lo com o objetivo de que ele se torne um ser inanimado que tem seu sangue extraído para gerar novos monstros. Coisa leve.
Em 2023, o momento era de tentar achar uma ideia pra sair do buraco, ou um emprego. Então eu tive todo o tipo de insight bizarro enquanto procurava um trabalho. Quando consegui o que queria, tive pouco tempo para desenvolver a história e os personagens, mas contei com um apoio fundamental: meu amigo de faculdade, Thor Sanchez, simplesmente a pessoa que mais conhece quadrinhos no meu círculo social. Por causa dele, voltei a consumir gibis nesse frenesi maluco de querer fazer quadrinhos independentes. Fizemos alguns paralelos e seguimos nosso caminho na trama.
Tá, porra, mas o que tem a ver?
Inspiração na obra de Shotaro Ishinomori à parte (os mangás do Kamen Rider são lindos), eu não podia fazer um “herói” com o mesmo nome. E nem a mesma narrativa. Sendo ele paulistano, era preciso adaptar os vilões, o problema-central e até mesmo as lutas cotidianas, sem entrar em maniqueísmos ou universos fantásticos com rivais horrendos. Elegi sem dificuldade o capital como inimigo-mor de Z-O, o mano mascarado da zona oeste. Ele é um jovem estudante que anda de moto e acaba tendo de procurar uma solução para a própria imbecilidade, quando sofre um acidente durante uma tentativa de grau nas ruas de São Paulo. A partir daí, a vida de Caio Muto muda radicalmente quando ele conhece um site de aluguel de motos que faz uma parceria com apps de entrega. É a saída perfeita.
No início, foi complicado fugir do que eu havia lido e visto na série. Mas a insistência nos rabiscos e nas fugas da referência ajudaram. Devo ter feito uns cinco ou seis modelos diferentes até chegar no que vocês viram ali na abertura do texto. Que por sinal foi alterado depois da conclusão com sutis atualizações. O que vale dizer sobre a história é: Caio é um resumo de todos nós assalariados e que viemos de baixo para tentar a sorte no hostil mundo capitalista contemporâneo. Para quem pensa que o grande problema do país é a violência, não a má distribuição de renda e a desigualdade, é só mais uma história normal. Não é. É a história de quem não tem pai influente, nem herdou empresa e sequer vem de berço de ouro que permite pular de lugar em lugar nadando de braçada na mediocridade.
São Paulo é a terra da oportunidade. E é também a terra da contrapartida e da exploração. Não à toa, as grandes empresas mudaram a sede para lá, pela pujança e pelo ritmo alucinado da metrópole, centro econômico nacional. Falo sobre a terra da contrapartida porque em nenhum outro lugar que conheço as pessoas abrem mão da própria vida pra poder pagar por moradia e comida. Alguém lhe concede o benefício de um salário em troca do seu tempo, da sua energia e também de grande parte do seu horário que deveria ser de descanso. Em nenhum outro lugar o discurso de locomotiva pega tão forte, mesmo em quem gasta quatro horas para ir e voltar do trabalho todos os dias e só aproveita a migalha de uma noite para lembrar que está vivo.
Foi essa a minha realidade em pouco mais de um mês de “objetivo alcançado”. Eu não tinha nada a não ser meu salário e meu VR. Os fins de semana longe de casa (sou paulistano, mas há tempos me exilei) e a solidão me levaram a um estado de apatia e desânimo. Enquanto isso, para quem explorava a mim e a outros colegas, a vida seguia a 120 km/h, naquele discurso descolado que você conhece, com uma falsa rede de apoio que você também já viu de perto. Que pena que não deu certo, a culpa é sua que não se esforçou, olha só seus colegas como suportaram toda a pressão e estão aqui, liderando uma área mesmo ocupando um cargo júnior! Um mês foi tempo suficiente para ouvir e presenciar vários absurdos.
Caio, o Z-O, é filho de uma contadora e um professor. E como todo jovem de periferia, quer uma vida melhor. E esse objetivo acaba se confundindo quando os caminhos levam para um lugar de exposição e reconhecimento pelo trabalho prestado. Quem sobe, quer continuar subindo. Mas a que custo? Quanto se paga pelo sonho de ter alguma independência do pesadelo de não poder arcar com as próprias contas? Vale mais o saldo polpudo ou o sossego? Quem rende muito no trabalho, rende para si ou para alguém?
Z-O não é uma história de lutinha e motos. É a saga de alguém que se perde nas próprias escolhas e nas ilusões fomentadas por terceiros. Também é a história de quem sabe que o mundo é uma cadeia alimentar e que os mais fortes se alimentam dos mais fracos. A competição por espaço e reconhecimento é quase tão urgente quanto a própria sobrevivência. Nessa toada, os princípios pessoais valem muito pouco. É nós ou eles, mesmo que “eles” sejam os nossos, no fim.
Quando os caminhos se confundem, é necessário voltar ao início, diriam os Racionais. A HQ está sendo produzida após vários ensaios, rascunhos que desprezei e execuções que não considerei boas o suficiente. Logo soltarei mais conteúdo e as primeiras intenções de publicação do material. Fiquem ligados!